Os restaurantes estão abrangidos pelo DL 163/06?
Tudo indica que os restaurantes estão abrangidos pelo DL 163/06, não sendo correcto considerá-los liminarmente dispensados.
A dúvida coloca-se, de facto, a quem compare a redacção dos âmbitos de aplicação do DL 123/97 e do DL 163/06. O primeiro refere-os explicitamente, o segundo não.
O DL 123/97 refere, no seu Art. 2.º, n.º 2:
“l) Estabelecimentos comerciais (…) e ainda restaurantes e cafés cuja superfície de acesso ao público ultrapasse 150m2”
Já o DL 163/06 refere no seu Art. 2..º, n.º 2:
“q) Estabelecimentos comerciais cuja superfície de acesso ao público ultrapasse 150m2, bem como hipermercados, grandes superfícies, supermercados e centros comerciais;
r) Estabelecimentos hoteleiros, meios complementares de alojamento turístico (…) e ainda cafés e bares cuja superfície de acesso ao público ultrapasse 150m2.”
Haverá, antes de mais, dois pontos prévios a considerar, que restringem o âmbito de análise desta dúvida.
a) Os restaurantes integrados noutros equipamentos e estabelecimentos, i.e., os restaurantes que estiverem inseridos no conjunto edificado e constituírem parte integrante do serviço oferecido aos utentes de outros estabelecimentos (por ex., restaurantes integrados em hotéis, centros comerciais, hospitais, etc.), têm, pelo menos, de estar dotados de acesso pelo percurso acessível (cfr. 2.1.1 e 2.1.2). Poderá haver outras exigências aplicáveis, que agora não aprofundaremos. A dúvida sobre a aplicação do DL 163/06 aos restaurantes deve colocar-se, portanto, no âmbito mais restrito dos restaurantes “independentes”, i.e., não integrados por qualquer forma noutro tipo de estabelecimentos.
b) De entre esses restaurantes independentes, e nos termos do próprio DL 163/06, a questão da aplicabilidade coloca-se apenas relativamente aos estabelecimentos com uma superfície de acesso ao público superior a 150 m2.
Trata-se, portanto, de saber se o DL 163/06 se aplica aos restaurantes independentes e com uma superfície de acesso ao público superior a 150m2.
Vejamos esta questão na vertente da discriminação, da terminologia e da coerência do legislador.
1. Discriminação
Aquilo que pode não resultar claro do DL 163/06 resulta claríssimo na Lei 46/2006 de 28 de Agosto, que veio proibir e punir a discriminação em razão da deficiência e da existência de risco agravado de saúde.
Esta lei, que vincula todas as pessoas singulares e colectivas, públicas ou privadas, entende por discriminação directa “a que ocorre sempre que uma pessoa com deficiência seja objecto de um tratamento menos favorável que aquele que é, tenha sido ou venha a ser dado a outra pessoa em situação comparável” (cfr. Art. 3.º alínea A). Note-se que o termo “comparável” refere-se à situação de cliente, não à situação de deficiência.
No seu Art. 4.º, esta lei especifica como práticas discriminatórias:
“a) A recusa de fornecimento ou o impedimento de fruição de bens e serviços;
b) O impedimento ou a limitação ao acesso e exercício normal de uma actividade económica;
(…)
e) A recusa ou a limitação de acesso ao meio edificado ou a locais públicos ou abertos ao público”.
Note-se que mesmo que não haja recusa por parte da gerência do restaurante, a existência de barreiras à acessibilidade constitui um impedimento.
Nestes termos, o incumprimento das normas do DL 163/06 num restaurante com uma superfície de acesso ao público superior a 150m2 pode configurar uma prática discriminatória, especialmente se o incumprimento dessas normas não estiver enquadrado por nenhuma situação de excepção prevista no DL 163/06.
2. Terminologia
Coloca-se certamente a questão de considerar os restaurantes abrangidos ou não pela expressão “estabelecimentos comerciais”, seja na sua acepção mais ampla (todos os estabelecimentos onde haja relações comerciais, incluindo a prestação de serviços no domínio da restauração) ou mais restrita (diferenciando-a de estabelecimentos de restauração).
Salvo melhor opinião, é óbvio que um restaurante é um estabelecimento comercial, e que as distinções de carácter administrativo que possam ser feitas não devem prejudicar este entendimento básico.
A título de exemplo, e segundo informação que pude recolher, no Plano Director Municipal de Lisboa a “restauração e bebidas” aparece como uso específico dentro dos usos terciários, sendo portanto equiparada a uso comercial.
3. Coerência do Legislador
Num âmbito mais alargado, é nítido que o quadro jurídico existente, da Constituição ao próprio DL 163/06, no que se refere ao acesso a bens e serviços, aponta claramente no sentido do combate à discriminação, da igualdade de oportunidades e da eliminação das barreiras.
Pela leitura do preâmbulo do DL 163/06, aliás, ficamos a saber, no que respeita ao âmbito de aplicação, que a intenção do legislador foi a de manter todos os espaços, instalações e estabelecimentos abrangidos pelo DL 123/97, acrescentando-se agora apenas os edifícios habitacionais.
E no quadro das normas, há uma referência concreta, a título de exemplo, aos restaurantes (cfr. 2.1.2.1). Ora, o legislador usaria, para exemplificar a aplicação de uma norma da lei, um tipo de estabelecimento não abrangido por essa mesma lei?
Em conclusão, o bom senso
Em complemento da análise feita acima, não poderíamos concluir o texto sem uma referência ao bom senso e ao sentido de qualidade dos profissionais que, no domínio do projecto, da apreciação e da fiscalização, são responsáveis pela aplicação da lei.
Faz algum sentido que nos restaurantes portugueses, dos mais modestos aos mais luxuosos, dos mais pequenos aos mais amplos, o cliente que usa as instalações sanitárias se depare com dimensões tão ridiculamente mínimas como as que é frequente encontrar?
Faz sentido (e passe o exemplo) que nos restaurantes portugueses o cliente tenha tantas vezes de se colocar de pé sobre a sanita para sair da cabina? Que questões de conforto, higiene e segurança se levantam? Que sentido faz?
PHG – 29MAR2007
quarta-feira, março 28, 2007
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2 comentários:
Caro arquitecto,
frequentei formação em acessibilidades (em que o arquitecto deu formação)e fiquei convencido de que para um estabelecimento de restauração e bebidas com área de atendimento ao publico inferior a 150 m2 não necessita de uma instalação sanitária própria para pessoas com mobilidade condicionada, nem em edificios anteriores a 1997, poderá esclarecer-me sobre a aplicação da Lei 46/2006, para estes casos?
cumps,
elisio silva
Caro Elísio Silva,
Duas notas de detalhe, e uma (tentativa de) resposta à sua questão.
1) Em rigor, a expressão que está no DL 163/2006 não é superfície de atendimento ao público, mas sim "superfície de acesso ao público", ou seja, toda a área do estabelecimento à qual não é vedado o acesso de pessoas estranhas ao serviço. Devem portanto incluir-se nessa área as instalações sanitárias para os clientes bem como todos os espaços de circulação abertos aos clientes.
2) Uma instalação sanitária que cumpra as normas do DL 163/2006 deve ser designada por "IS acessível". Nada naquele decreto obriga a vedar o seu uso a clientes que não tenham a mobilidade condicionada, e nada impede que a IS acessível seja portanto a IS de uso corrente (por outras palavras, não é preciso ter uma IS a mais para "ter a IS dos deficientes", como às vezes erradamente se supõe).
3) Só os estabelecimentos abrangidos pelo DL 163/2006 estão, em rigor, obrigados a cumprir as disposições desse decreto, nomeadamente as normas técnicas e os prazos para adaptação. E no artigo 2.º n.º encontramos uma enumeração taxativa, portanto só o que lá está expressamente referido é que está abrangido. Não parece correcto supor que a Lei 46/2006 tenha vindo alargar o âmbito de aplicação das exigências do DL 163/2006. O que essa lei refere é algo diferente: é que a falta de acessibilidade no meio edificado é uma prática discriminatória, e que não se pode, por via da deficiência de uma pessoa, impedi-lo de entrar em edifícios e estabelecimentos e de usufruir dos bens e serviços que aí estejam disponíveis para os restantes cidadãos. Por outras palavras, não é admissível que a falta de acesso físico impeça um cliente com deficiência motora (por exemplo) de entrar no estabelecimento e de (por exemplo) consumir uma refeição e usufruir das restantes coisas disponibilizadas aos clientes (incluindo o uso das IS). Em rigor, poderá o proprietário do estabelecimento ter de ajudar o cliente, mesmo que com ajuda manual (carregar a pessoa, por exemplo), a vencer as barreiras existentes no interior do estabelecimento.
Esta, note-se, é UMA interpretação possível.
Outros advogam, por exemplo, que a Lei 46/2006 veio alargar a exigência de acessibilidade a outros estabelecimentos não abrangidos pelo DL 163/2006, defendendo que nem todas as normas têm de ser cumpridas, mas nunca são capazes de especificar quais são, então, as normas dispensáveis.
Penso que só com uma alteração legislativa (do DL 163/2006, por exemplo), ou através da jurisprudência, é que esta questão poderá vir a ser resolvida.
Até lá, o mais prudente (para o proprietário) é promover o maior grau de acessibilidade possível no interior do estabelecimento (tendo em conta, e volto ao início, que a IS acessível não tem de ser de uso exclusivo dos clientes com deficiência).
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