quinta-feira, janeiro 21, 2010

Texto Legível


Define-se como “legível” um texto “que pode ler-se, escrito em caracteres nítidos, bem visíveis e distintos”. *

A legibilidade de um texto, como é natural, é indispensável para aceder ao seu conteúdo, e para tirar partido desse conteúdo.

A legibilidade é, portanto, uma questão de acessibilidade.

Ora, imaginemos, por exemplo, um texto que está…
…num folheto que explica como recorrer a um serviço municipal;
…numa placa que indica o horário de funcionamento de um estabelecimento;
…numa peça de um sistema de sinalização, que ajuda o visitante a encontrar o caminho.

Se o arranjo gráfico desse texto impedir ou limitar a sua leitura por parte dos utilizadores, poderemos estar perante uma prática discriminatória, porque a falta de legibilidade prejudica a igualdade de oportunidades no acesso e usufruto dos conteúdos.

Por isso, para além de ser um critério de qualidade, a legibilidade pode ser uma exigência legal.


É mesmo importante?

Em termos genéricos, pode dizer-se que uma pessoa tem deficiência visual quando os óculos não compensam a perda de visão que tem.

Quer isto dizer que uma larga maioria da população com deficiência visual consegue ver – em menor grau, certamente, mas alguma coisa vê. Algumas pessoas usam apenas parte do seu campo visual – é o caso, por exemplo, de quem teve cataratas ou tem degeneração da mácula, visão de túnel ou retinopatia. Outras pessoas conseguem usar o campo visual em toda a sua amplitude, mas têm extrema dificuldade em perceber os contornos em imagens ou objectos – caso, por exemplo, de quem tem ambliopia (veja como, em imagens neste outro texto).

Para esta vasta população, é muito importante a legibilidade dos textos – tanto dos textos usados em sistemas de sinalização, como dos textos inseridos em publicações ou sítios da Internet.


Que normas legais?

Entende-se que a exigência de legibilidade decorre, em termos gerais, da Lei 46/2006, que proíbe e pune a discriminação.

Esta lei…

…define como discriminação indirecta a que ocorre sempre que uma “prática aparentemente neutra seja susceptível de colocar pessoas com deficiência numa posição de desvantagem comparativamente com outras pessoas” (cf. art.º 3.º, al. b);

…classifica como prática discriminatória a “limitação de acesso” ao meio edificado, a locais públicos ou abertos ao público (cf. art.º 4.º, al. e), aos transportes públicos (art.º 4.º, al. f), bem como “a adopção de prática ou medida” por parte de qualquer entidade do Estado que “condicione ou limite a prática do exercício de qualquer direito”.

As normas técnicas de acessibilidade definidas no DL 163/2006 incidem sobre a legibilidade dos textos usados em sistemas de sinalização.

Refere-se no ponto 4.14.5:

“Para assegurar a legibilidade a sinalização deve possuir as seguintes características:
1) Estar localizada de modo a ser facilmente vista, lida e entendida por um utente de pé ou sentado;
2) Ter uma superfície anti-reflexo;
3) Possuir caracteres e símbolos com cores que contrastem com o fundo;
4) Conter caracteres
[números, letras] ou símbolos que proporcionem o adequado entendimento da mensagem”.

O “adequado entendimento da mensagem” remete para a legibilidade, mas não só (pode implicar, por exemplo, a necessidade de os sistemas de sinalização recorrerem, também, a pictogramas).

No ponto 4.14.6, define-se ainda, (mas apenas para a identificação do número do piso), o uso obrigatório de numeração arábica (i.e., em vez de numeração romana ou números por extenso, em texto) e a altura e o tipo dos caracteres (altura mínima de 6cm, tipo negrito).

Noutros países vigoram normas bastante mais detalhadas e prescritivas. As normas do DL 163/2006 dão, comparativamente, bastante “margem de manobra” ao designer gráfico – mas essa margem deve ter como contrapartida uma garantia de eficácia, ou seja, as soluções adoptadas do ponto de vista do arranjo gráfico devem ser assegurar a legibilidade para a população com visão reduzida.

Não sendo fornecidas especificações mais detalhadas, deve presumir-se que a eficácia é a condição que melhor concretiza o espírito da lei e a exigência das normas.

Esta eficácia, note-se, pode ser testada.

E se atendermos ao que está objectivamente em causa – a possibilidade de leitura para pessoas que têm determinado tipo de limitações – verificamos que há estudos científicos que nos fornecem orientações concretas.

Há bastante material disponível.

As recomendações seguintes foram redigidas com base nalguns textos de referência a este respeito, nomeadamente “Making Text Legible: Designing for People with Partial Sight”, de Aries Arditi, Ph.D. (para aceder à versão original basta clicar aqui).


Recomendações Gerais para a Legibilidade

A visão reduzida dificulta frequentemente a leitura ao…
…reduzir a quantidade de luz que entra no olho;
…retirar nitidez à imagem projectada na retina;
…danificar a parte central da retina (mácula), mais apropriada para a leitura.

A redução da luz e a perda de nitidez reduzem o contraste do texto, enquanto que o dano na parte central da retina prejudica a capacidade de ver pequenos caracteres bem como de fazer os movimentos oculares que são cruciais para a leitura.

Eis algumas linhas de orientação que tornam os textos mais legíveis para quase todas as pessoas, e que os designers gráficos podem seguir para ajudar a compensar a dificuldade dos leitores com visão reduzida.


1. Contraste

O texto deve ser impresso com o maior contraste possível – em especial, contraste claro-escuro (ler mais sobre contraste cromático neste outro texto).

Sabe-se ainda que para muitos leitores idosos ou com visão reduzida, os caracteres claros (em branco ou amarelo claro) sobre fundo escuro (preto) são mais legíveis do que os caracteres escuros sobre fundo claro.

Fig. 1 – Contraste
(tradução: “Effective” = eficaz;
“Not as effective” = não tão eficaz)


2. Cor dos caracteres

O contraste é um factor essencial a ter em conta na escolha da cor dos caracteres.

O material impresso (livros, folhetos, etc.) é geralmente mais legível a preto e branco. É difícil conseguir contrastes muito elevados com outras combinações de cor.

O recurso a outras cores pode, naturalmente, ser importante por motivos estéticos (ou outros), mas é melhor usar essas combinações apenas para textos maiores ou destacados.

Fig. 2 – Cor dos caracteres e do fundo
(tradução: “Effective” = eficaz;
“Not as effective” = não tão eficaz)

3. Tamanho dos caracteres

Em material impresso que vai ser manuseado (livros, folhetos, etc.) os caracteres devem, preferivelmente, ter pelo menos 16 a 18 pontos. Há que ter em consideração, ainda assim, que a relação entre legibilidade e tamanho varia com a fonte e o seu estilo (itálico, negrito, etc.).

(NOTA: “fonte” é o sortimento completo de tipos de um tamanho e estilo, o conjunto de sinais, letras e espaços do mesmo carácter e corpo – aquilo que no programa Word é designado como “tipo de letra”: arial, times new roman, verdana, etc.).

Fig. 3 – Tamanho dos caracteres
(tradução: “This type size is effective” = Este tamanho de tipo é eficaz;
“This type size is not as effective” = Este tamanho de tipo não é tão eficaz)

Em sistemas de sinalização, por seu lado, o tamanho dos caracteres deve ser definido tendo em conta a distância a que o texto vai ser lido. Quanto maior essa distância, maior deverá ser a dimensão dos caracteres.
Fig. 4 – Relação entre distância ao texto e tamanho dos caracteres
(fonte: Louis-Pierre Grosbois)

Note-se que isto é importante para as pessoas com visão reduzida, mas não só.

É importante, primeiro, para qualquer utilizador de um sistema de orientação e navegação no espaço (wayfinding), porque o tamanho dos caracteres vai facilitar-lhe o avistamento das indicações e a sua leitura à distância, permitindo-lhe tomar decisões mais cedo.

Fig. 5 – A leitura a partir de baixo levanta dificuldades

É importante, em segundo lugar, porque facilitará a leitura a todos aqueles que, por serem de baixa estatura ou usarem cadeira de rodas, têm à partida um ponto de vista desfavorável, mais baixo (e mais distante), e não se podem aproximar do texto.

4. Espaçamento entre linhas (leading)

O espaçamento entre linhas de texto deve ter, pelo menos, 25% a 30% do tamanho (em pontos) dos caracteres. Isto porque muitas pessoas com visão parcial, quando lêem, têm dificuldade em encontrar o início da linha seguinte.

Fig. 6 – Espaçamento entre linhas
(tradução: “Effective leading” = Espaçamento entre linhas eficaz;
“Not effective leading” = Espaçamento entre linhas ineficaz)


5. Tipo de Fonte

Devem evitar-se fontes complicadas, decorativas ou cursivas (letras consecutivas ligadas entre si). Quando for indispensável usar esse tipo de fonte, ela devem ser reservada para dar ênfase a partes do texto, e não para todo o texto.

Fig. 7 – Família da fonte
(tradução: “Roman typefaces are effective” = os estilos romanos são eficazes;
“Decorative typefaces are not as effective” = os estilos decorativos não são tão eficazes;
“Sans-serif typefaces are effective” = os estilos não serifados são eficazes;
“Condensed typefaces are not as effective” = os estilos condensados não são tão eficazes)


Fig. 8 – Fonte cursiva “Zapfino”

As letras serifadas standard ou não serifadas, com caracteres familiares e facilmente reconhecíveis, são melhores. Sabe-se, além disso, que quando o tamanho dos caracteres é reduzido, os caracteres não serifados são mais legíveis.

Fig. 9a – Caracteres serifados

Fig. 9b – Caracteres não serifados

(NOTA: “serifa” é o pequeno traço ou espessamento que remata, de um ou de ambos os lados, os terminais das letras. Serifado diz-se da letra que apresenta serifa. Exemplo: times new roman é serifada, arial não é serifada).


6. Estilo da Fonte

Há poucos dados fiáveis quanto à comparação da legibilidade entre diferentes estilos. Existem, todavia, algumas provas de que um estilo romano, usando maiúsculas e minúsculas, é mais legível do que um estilo itálico, oblíquo ou condensado.

Fig. 10 – Estilo da fonte
(tradução: “Upper and lower case type is effective” = combinação de
tipo maiúsculo e minusculo é eficaz;
“Italic type is not as effective” = tipo itálico não é tão eficaz)



7. Espaçamento entre caracteres

O texto com pouco espaçamento entre letras coloca frequentemente dificuldades aos leitores com visão parcial, especialmente aos que têm defeitos no centro do campo visual (mácula).

Fig. 11 – Espaçamento entre letras
(tradução: “This letter spacing is effective” = este espaçamento entre letras é eficaz;
“This letter spacing is not as effective” = este espaçamento entre letras não é tão eficaz)


A definição da fonte inclui não apenas a configuração dos caracteres, mas também a dimensão e o tipo de espaçamento entre caracteres. Nalgumas fontes, o espaçamento é proporcional aos caracteres; noutras fontes, é homogéneo (ou seja, é sempre o mesmo, independentemente dos caracteres).

Fig. 12 – Espaçamento proporcional ou homogéneo


Neste ponto, sabe-se que os espaçamentos homogéneos parecem ser mais legíveis do que os espaçamentos proporcionais.


8. Acabamento da Superfície

A existência de brilhos e reflexos na superfície em que o texto está montado colocam dificuldades a muitas pessoas idosas ou com visão reduzida, e reduzem a legibilidade.

Nos materiais impressos, deve evitar-se o papel brilhante ou lustroso (tipo couché).

Fig. 13 – Reflexos em revista


Em sistemas de sinalização, e nos textos afixados em vitrinas, devem evitar-se superfícies polidas no suporte e nos caracteres.

Fig. 14 – Reflexo em vitrina

Quando for indispensável proteger o texto com uma vitrina, deve optar-se por vidros anti-reflexo e iluminação indirecta.


Folhetos, livros, etc.

Vejamos agora algumas recomendações aplicáveis, especificamente, a materiais impressos que poderão ser manuseados (folhetos, livros, revistas, etc.).


9. Margens

A eficácia dos equipamentos que ajudam as pessoas com visão reduzida a ler, como ampliadores ópticos e ampliadores vídeo, aumenta bastante quando o texto se apresenta numa superfície plana. As margens extra-largas junto à lombada são especialmente úteis, porque permitem abrir o volume e planificar o texto com maior facilidade. A lombada em espiral também pode ser útil.

Fig. 15 – Margens
(tradução: “Effective” = eficaz;
“Not as effective” = não tão eficaz)

Fig. 16 – Ampliador vídeo

10. Distinção entre peças

A visão reduzida torna frequentemente difícil encontrar um livro ou outro documento que esteja misturado com publicações similares, especialmente quando se trata de conjuntos de volumes que diferem apenas no título ou no número. O uso de cores, tamanhos e formatos distintivos nas capas pode ajudar as pessoas mais idosas e as que têm visão reduzida.

Fig. 17 – Distinção entre peças



Caracteres tácteis

Os caracteres tácteis são usados, sobretudo, para designar locais fixos (número de sala, divisão por sexos das instalações sanitárias, etc.). Como o nome indica, devem poder ser lidos pela visão e pelo tacto.

Vale a pena referir que boa parte da população com deficiência visual não consegue ler os caracteres Braille – em muitos casos, simplesmente porque não aprendeu (o que acontece frequentemente a quem perdeu a visão após os 20 anos de idade). Assim sendo, embora o Braille seja indispensável para muitas pessoas, o seu uso não esgota as necessidades dos leitores com visão reduzida.

A legislação norte-americana é bastante exigente e detalhada relativamente aos caracteres tácteis a usar em sinalização. O Title 24 (aplicável ao Estado da Califórnia) estabelece parâmetros específicos para as proporções: a largura deve corresponder a 60% a 100% da altura da letra ou número, e a espessura do traço deve estar entre 10% a 20% da altura.

Fig. 18 – Proporções para caracteres tácteis

PHG 21JAN2010
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Créditos e Referências:

Fig. 1, 2, 3, 6, 7, 10, 11, 15 e 17 – Copyright © 2009 Lighthouse International Inc., all rights reserved.
Fig. 4 – Copyright Louis-Pierre Grosbois
Fig. 8, 9 e 12 – na Wikipedia

Texto de Aries Arditi – Copyright © 2005 Lighthouse International Inc, all rights reserved.

* Definição de “legível” in “Michaelis: Moderno Dicionário da Língua Portuguesa”

Agradecimentos:
Peter Colwell

segunda-feira, janeiro 18, 2010

WC: divisão por sexos


Pode haver acessibilidade apenas na casa de banho das senhoras?


Não.

Ambos os sexos devem ter igual oportunidade de usar uma instalação sanitária (IS) acessível.

Essa acessibilidade deve ser assegurada ao nível da construção e afectação dos espaços, ou seja, não é assunto que se resolva com uma autorização de uso caso a caso. No caso referido, isso sujeitaria os homens com mobilidade condicionada a um tratamento desigual, potencialmente discriminatório (mais ninguém dependeria de autorização para usar a IS, só eles).

Esta situação pode ser resolvida, basicamente, de duas formas:
…ou há acessibilidade nas instalações sanitárias de cada um dos sexos;
…ou há uma instalação sanitária acessível destinada a ambos os sexos.

Vejamos porquê.

As exigências do DL 163/2006 relativamente a este assunto estão definidas nos pontos 2.9.1 e 2.9.2:

«2.9.1 – Os aparelhos sanitários (…) acessíveis podem estar integrados numa instalação sanitária conjunta (…) ou constituir uma instalação sanitária específica [fisicamente separada] (…).

2.9.2 – Se existir uma instalação sanitária [acessível] específica, esta pode servir para o sexo masculino e para o sexo feminino e deve estar integrada ou próxima das restantes instalações sanitárias.»

Desta redacção podemos retirar três conclusões:

Primeira conclusão:

Não é obrigatório que os aparelhos sanitários acessíveis estejam fisicamente separados dos restantes, i.e., o DL 163/2006 não exige que haja, por regra, uma IS acessível separada das restantes.

Ambas as opções são perfeitamente aceitáveis nos termos da lei. É importante sublinhar que o hábito de fazer uma IS acessível separada não passa disso mesmo, um hábito.

Segunda conclusão:

Uma pessoa que precise de usar uma instalação sanitária (IS) acessível não pode ser obrigada a usar uma IS destinada exclusivamente ao sexo oposto.

Ora, uma IS acessível só pode ser considerada como utilizável por ambos os sexos se não estiver afecta apenas a um sexo específico.

Terceira conclusão:

Se os aparelhos sanitários acessíveis estiverem numa IS específica, separada das restantes, essa IS deve localizar-se na mesma zona da edificação, de forma a evitar a segregação espacial (uma forma de discriminação).

A IS acessível não poderá, portanto, localizar-se numa área manifestamente distinta da edificação (a não ser que, tratando-se da adaptação de um edifício existente, se possa abrir uma excepção).


Mais ou menos espaço?

É um erro considerar que a separação entre a IS acessível e as restantes IS leva necessariamente à poupança de espaço.

Há situações em que se poupa mais espaço promovendo a acessibilidade nas IS de cada um dos sexos, evitando-se assim a criação de uma terceira IS.


Outras normas legais

As exigências do DL 163/2006 devem ser conjugadas com as de outros diplomas aplicáveis à edificação.

Quando por via desses outros diplomas (higiene e segurança no trabalho, estabelecimentos de restauração, etc.) for exigível uma separação entre tipos de IS – seja a separação entre sexos, ou entre funcionários e público – haverá que assegurar a acessibilidade em ambos os tipos.

Por outras palavras, se for exigida a separação entre IS para funcionários e IS para público, não se poderá obrigar um funcionário que precise de acessibilidade a usar a IS do público. Isso constituiria uma prática discriminatória.

Nesse tipo de situações a solução para poupar (e rentabilizar) espaço passará sempre por promover a acessibilidade nas instalações correntes, em vez de a separar.


PHG 18JAN2010

APLICAÇÃO: Obras de alteração em edifícios com prazo para adaptação


O prazo definido para a adaptação de um edifício termina em 2017. Uma obra de alteração vai intervir agora em elementos que não cumprem as normas de acessibilidade.

O facto de ainda haver tempo de sobra para adaptar permite que não se adaptem já os elementos que vão ser alterados?


Não.

A obra de alteração deve corrigir as desconformidades nos elementos em que intervier.

Por exemplo: se remodelar as instalações sanitárias, deve adaptá-las; se substituir os puxadores de porta, deve instalar puxadores acessíveis; etc.

É um facto que às obras de alteração se aplica o princípio da garantia do existente, estabelecido no Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE) e vertido para o DL 163/2006 (cf. artigo 3.º, n.º 2). Mas o próprio DL 163/2006 coloca nesse ponto limites à aplicação do princípio, para não prejudicar um objectivo fundamental (a promoção da acessibilidade nas edificações existentes) e para poupar recursos (o que se faz agora, faz-se bem, para evitar a duplicação das obras, com futura adaptação).

Vamos por partes.

Antes, duas notas prévias.

Primeira nota – não está em causa a abertura de excepções com base nos critérios definidos no artigo 10.º, n.º 1. O que se determina é a obrigatoriedade de aproveitar as oportunidades que houver para ir realizando as adaptações possíveis.

Segunda nota – também não está em causa a aplicação do princípio da garantia do existente aos edifícios habitacionais (para esses casos, ver este outro texto).


O princípio geral, no RJUE

O princípio da garantia do existente é estabelecido, de forma geral, no Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE, DL 555/99, na redacção dada pela Lei 60/2007), artigo 60.º, n.º 2, onde se refere:

“A concessão de licença ou autorização para a realização de obras de reconstrução ou de alteração das edificações não pode ser recusada com fundamento em normas legais ou regulamentares supervenientes à construção originária, desde que tais obras não originem ou agravem desconformidade com as normas em vigor, ou tenham como resultado a melhoria das condições de segurança e de salubridade da edificação.”

Como explicam Maria José Castanheira Neves, Fernanda Paula Oliveira, Dulce Lopes e Fernanda Maçãs, em comentário ao RJUE *, com este princípio evita-se “a aplicação de novas normas urbanísticas a edifícios que, por se encontrarem consolidados, não as podem cumprir”, visando “garantir a recuperação do património construído (e consolidado), já que se permite a realização de obras susceptíveis de melhorar as condições de segurança e de salubridade das edificações existentes que, de outra forma, não fosse a instituição deste princípio, teriam de ser indeferidas.”

É importante notar que existem alguns limites à aplicação deste princípio. Destacamos três.

Em primeiro lugar, ele não se aplica às obras de ampliação (como já vimos neste outro texto).

Em segundo lugar, ele não dita a imutabilidade do edifício “para todo o sempre”. Como se refere no próprio RJUE, artigo 60.º, n.º 3:

“…a lei pode impor condições específicas para o exercício de certas actividades em edificações já afectas a tais actividades ao abrigo do direito anterior, bem como condicionar a execução das obras [de alteração ou reconstrução] à realização dos trabalhos acessórios que se mostrem necessários para a melhoria das condições de segurança e salubridade da edificação.”

Em terceiro lugar, e como defendem as autoras da versão comentada do RJUE *, deve ser feita uma interpretação restritiva das situações às quais este princípio se aplica, uma vez que ele “parte do pressuposto da impossibilidade fáctica de cumprir novas exigências.”

Por outras palavras, o princípio serve para dispensar do cumprimento das normas que a edificação não consegue cumprir por estar consolidada – não deve servir para dispensar das restantes.


Os limites do DL 163/2006

O princípio da garantia do existente foi vertido para o artigo 3.º, n.º 2, do Decreto-Lei 163/2006, da seguinte forma:

“A concessão de licença ou autorização para a realização de obras de alteração ou reconstrução das edificações referidas, já existentes à data da entrada em vigor do presente decreto-lei, não pode ser recusada com fundamento na desconformidade com as presentes normas técnicas de acessibilidade, desde que tais obras não originem ou agravem a desconformidade com estas normas e se encontrem abrangidas pelas disposições constantes dos artigos 9.º e 10.º.”

Deve notar-se a referência às disposições constantes dos artigos 9.º e 10.º:

“…desde que tais obras não originem ou agravem a desconformidade com estas normas e se encontrem abrangidas pelas disposições constantes dos artigos 9.º e 10.º”. [sublinhado nosso]

O uso da conjunção aditiva “e” pressupõe uma condição cumulativa, i.e., a desconformidade com as normas técnicas do DL 163/2006 é admissível se, para além de não se originarem ou agravarem desconformidades, também forem respeitadas as condições constantes do artigo 9.º e ainda do artigo 10.º

Esta condição cumulativa é justificada pelo facto de o DL 163/2006 estabelecer (no artigo 9.º) um prazo para adaptação das edificações já existentes à data da sua entrada em vigor, e definir (no artigo 10.º) critérios para a abertura de excepções ao cumprimento das normas nessas edificações.

A intenção do legislador é, neste ponto, evidente: evitar que a aplicação do princípio da garantia do existente prejudique um objectivo fundamental do diploma – a adaptação das edificações existentes às novas normas de acessibilidade.


A obra de alteração, e o prazo

Nestes termos, a obra de alteração pode não corrigir uma desconformidade com as normas técnicas de acessibilidade do DL 163/2006, mas só se o edifício ainda tiver tempo de sobra para realizar as adaptações (i.e., se o prazo não tiver expirado) e se, simultaneamente (sublinhe-se “simultaneamente”) for aplicável a essa desconformidade algum dos critérios de excepção referidos no artigo 10.º, n.º 1.

Quer isto dizer, portanto, que o facto de ainda haver tempo para adaptar não justifica, por si só, que não se adaptem já os elementos que vão ser alterados.

As adaptações a ter em conta neste ponto não são todas aquelas de que o edifício carece, mas sim aquelas que cabe concretizar no quadro dos trabalhos previstos.

Por outras palavras, todas as intervenções da obra de alteração que de alguma forma possam beneficiar a acessibilidade, devem cumprir as normas técnicas. Os elementos que não forem intervencionados pela obra não têm de ser, por enquanto, adaptados. O que a lei não admite é que os trabalhos que puderem cumprir não o façam. Por exemplo: se forem colocadas portas novas, os puxadores devem cumprir as normas. Se for colocado um novo pavimento, este deve cumprir as normas. E se for introduzida uma forma de vencer os desníveis, esta deve cumprir as normas.

O espírito da lei é, a este respeito, claro, benéfico e racional: aproveitam-se as intervenções para ir corrigindo as desconformidades existentes, e evita-se o desperdício de meios (na correcção posterior do que se faria mal agora).


PHG
18JAN2010

* Maria José Castanheira Neves, Fernanda Paula Oliveira, Dulce Lopes, Fernanda Maçãs, "Regime Jurídico da Urbanização e Edificação comentado”, 2.ª edição, Edições Almedina, 2009.

terça-feira, janeiro 12, 2010

HABITAÇÃO: Obras de alteração ou reconstrução


O princípio da garantia do existente (artigo 3.º, n.º 2) aplica-se aos edifícios de habitação?


Sim.

O princípio da garantia do existente é estabelecido, de forma geral, no Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE, DL 555/99, na redacção dada pela Lei 60/2007), artigo 60.º, n.º 2, onde se refere:

“A concessão de licença ou autorização para a realização de obras de reconstrução ou de alteração das edificações não pode ser recusada com fundamento em normas legais ou regulamentares supervenientes à construção originária, desde que tais obras não originem ou agravem desconformidade com as normas em vigor, ou tenham como resultado a melhoria das condições de segurança e de salubridade da edificação.”

O que resulta deste princípio é que as obras de alteração ou reconstrução que vierem a ser realizadas numa edificação não terão de corrigir as desconformidades relativamente às normas que entraram em vigor após a sua construção – não terão de corrigir, mas também não poderão dar origem a novas desconformidades, nem agravar as desconformidades existentes.

Como explicam Maria José Castanheira Neves, Fernanda Paula Oliveira, Dulce Lopes e Fernanda Maçãs, em comentário ao RJUE *, com este princípio evita-se “a aplicação de novas normas urbanísticas a edifícios que, por se encontrarem consolidados, não as podem cumprir”, visando “garantir a recuperação do património construído (e consolidado), já que se permite a realização de obras susceptíveis de melhorar as condições de segurança e de salubridade das edificações existentes que, de outra forma, não fosse a instituição deste princípio, teriam de ser indeferidas.”

Este é, como se disse, o princípio geral (relativamente ao qual existem alguns limites, que veremos adiante).


No DL 163/2006

O princípio da garantia do existente foi vertido para o artigo 3.º, n.º 2, do Decreto-Lei 163/2006, da seguinte forma:

“A concessão de licença ou autorização para a realização de obras de alteração ou reconstrução das edificações referidas, já existentes à data da entrada em vigor do presente decreto-lei, não pode ser recusada com fundamento na desconformidade com as presentes normas técnicas de acessibilidade, desde que tais obras não originem ou agravem a desconformidade com estas normas e se encontrem abrangidas pelas disposições constantes dos artigos 9.º e 10.º.”

Deve notar-se que esta redacção tem uma particularidade, que é a referência às disposições constantes dos artigos 9.º e 10.º: “…desde que tais obras não originem ou agravem a desconformidade com estas normas e se encontrem abrangidas pelas disposições constantes dos artigos 9.º e 10.º”. [sublinhado nosso]

O uso da conjunção aditiva “e” pressupõe uma condição cumulativa, i.e., a desconformidade com as normas técnicas do DL 163/2006 é admissível se, para além de não se originarem ou agravarem desconformidades, também forem respeitadas as condições constantes do artigo 9.º e ainda do artigo 10.º

Esta condição cumulativa é justificada pelo facto de o DL 163/2006 estabelecer (no artigo 9.º) um prazo para adaptação das edificações já existentes à data da sua entrada em vigor, e definir (no artigo 10.º) critérios para a abertura de excepções ao cumprimento das normas nessas edificações.

A intenção do legislador é, neste ponto, evidente: evitar que a aplicação do princípio da garantia do existente prejudique um objectivo essencial do diploma – a adaptação das edificações existentes às novas normas de acessibilidade.


O caso da habitação

O que ficou dito é o que resulta claro para os edifícios aos quais se aplica o disposto nos artigos 9.º e 10.º.

Deve notar-se, agora, que os prazos para adaptação do artigo 9.º, e os critérios de excepção do artigo 10.º, não se aplicam aos edifícios habitacionais.

Ora, tendo em conta a redacção do diploma, em que o respeito pelos artigos 9.º e 10.º é uma condição indispensável (“…e se encontrem abrangidas pelas disposições constantes dos artigos 9.º e 10.º”), será que ainda assim, o princípio da garantia do existente se aplica a esses edifícios?

A resposta também nos parece evidente: sim.

A condição cumulativa dos artigos 9.º e 10.º é relevante para as edificações abrangidas por esses artigos, mas é irrelevante para os edifícios de habitação.

O legislador introduziu-os como condição cumulativa à aplicação do princípio da garantia do existente para não prejudicar o cumprimento do prazo de adaptação nos edifícios para os quais esse prazo existe, e não para, de alguma forma, impedir a aplicação do princípio da garantia do existente aos edifícios habitacionais.

Interpretar a redacção do artigo 3.º, n.º 2, de outra forma não seria coerente com o espírito do próprio decreto – faria sentido supor que o legislador não define um prazo para a adaptação dos edifícios habitacionais existentes, mas proíbe-os de realizar obras de alteração que não corrijam todas as desconformidades, mesmo aquelas que sejam desproporcionadamente difíceis? **


Obviamente, não faria sentido.

Aplicar o princípio da garantia do existente aos edifícios de habitação não implica, portanto, qualquer contradição – nem com o espírito, nem com a letra da lei.


Limites no RJUE

Como se referiu no início, o RJUE estabelece o princípio da garantia do existente de uma forma geral.

É importante notar que existem alguns limites à aplicação deste princípio.

Primeiro, ele não se aplica às obras de ampliação (como já vimos neste texto).

Em segundo lugar, ele não dita a imutabilidade do edifício “para todo o sempre”. Como se refere no próprio RJUE, artigo 60.º, n.º3:

“…a lei pode impor condições específicas para o exercício de certas actividades em edificações já afectas a tais actividades ao abrigo do direito anterior, bem como condicionar a execução das obras [de alteração ou reconstrução] à realização dos trabalhos acessórios que se mostrem necessários para a melhoria das condições de segurança e salubridade da edificação.”

Em terceiro lugar, e como defendem as autoras da versão comentada do RJUE *, visando este princípio "evitar a aplicação de novas normas urbanísticas a edifícios que, por se encontrarem consolidados, não as podem cumprir (…) deve ser feita uma interpretação restritiva" das situações às quais ele se aplica.

Deste modo, correspondendo as obras de reconstrução sem preservação das fachadas a obras que procedem à reconstituição da estrutura das fachadas, da cércea e do número de pisos de uma edificação existente, que podem ocorrer subsequentemente à demolição total ou apenas parcial da mesma, parece-nos que não deve ser de aplicar o regime de protecção do existente sempre que a obra ocorra após a demolição total (…). Numa situação destas, desaparecendo a edificação originária, não vemos porque não cumprir com as novas regras entradas em vigor em data posterior à edificação originária, já que o regime especial previsto para edifícios existentes parte do pressuposto da impossibilidade fáctica de cumprir novas exigências, o que não sucede no caso.” [sublinhado nosso]

PHG
11JAN2010

* Maria José Castanheira Neves, Fernanda Paula Oliveira, Dulce Lopes, Fernanda Maçãs, ”Regime Jurídico da Urbanização e Edificação comentado”, 2.ª edição, Edições Almedina, 2009.

** Recorde-se que os critérios de excepção do artigo 10.º, n.º 1, não se aplicam à habitação.