sexta-feira, outubro 19, 2007

Apreciação dos Projectos

Segundo o RJUE, a apreciação pela câmara municipal de um pedido de licenciamento deve incidir sobre a conformidade com planos e outras regras relativas ao aspecto exterior e à inserção urbana e paisagística das edificações, e sobre o uso proposto.

Pode concluir-se, portanto, que a câmara municipal não tem de verificar o cumprimento das normas de acessibilidade que digam respeito aos espaços interiores das edificações?



Não.

No âmbito da apreciação dos pedidos de licenciamento cabe à câmara municipal verificar o cumprimento das normas técnicas de acessibilidade aplicáveis.

Para compreender porquê, vejamos, primeiro, o que determinam o Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação (RJUE, DL 555/99 na sua versão actual) e o DL 163/2006.

Refere o RJUE, no seu Artigo 20.º, n.º 1 (apreciação dos projectos de obras de edificação):

“A apreciação do projecto de arquitectura [de determinadas obras] incidirá sobre a sua conformidade com os planos municipais de ordenamento do território, planos especiais de ordenamento do território, medidas preventivas, área de desenvolvimento urbano prioritário, área de construção prioritária, servidões administrativas, restrições de utilidade pública e quaisquer outras normas legais e regulamentares relativas ao aspecto exterior e a inserção urbana e paisagística das edificações, bem como sobre o uso proposto”.

Por sua vez, refere o DL 163/2006, no seu Artigo 3.º, n.º 1 (licenciamento e autorização):

“As câmaras municipais indeferem o pedido de licença ou autorização necessária ao loteamento ou a obras de construção, alteração, reconstrução, ampliação ou de urbanização, de promoção privada, referentes a edifícios, estabelecimentos ou equipamentos [abrangidos] quando estes não cumpram os requisitos estabelecidos neste decreto-lei.”


I. Contradição ou complemento?

O RJUE estipula, de facto, que em termos gerais (porque é de princípios gerais que trata um regime jurídico) não cabe às câmaras municipais verificar, em sede de apreciação, o cumprimento das normas técnicas nas partes interiores das edificações.

Esta postura é sustentada pela obrigação imposta ao projectista de assumir, num termo próprio, a responsabilidade pelo cumprimento das normas aplicáveis (cfr. Art.º 10.º, n.º 1 do RJUE).

Por outro lado, o DL 163/2006 estabelece a obrigação de indeferimento, pelas câmaras municipais, dos pedidos que não cumpram essas normas, o que pressupõe a verificação do seu cumprimento, em sede de apreciação.

Ora, como se sabe, as normas técnicas do DL 163/06 definem obrigações para os espaços exteriores, mas também para os espaços interiores da edificação.

Afinal, conjugando o disposto no RJUE e no DL 163/06, em que ficamos?

Perfilam-se duas hipóteses:

…ou se entende que o DL 163/06 contradiz o RJUE (nesse caso, trata-se de ver qual prevalece);

…ou se entende que o DL 163/2006 complementa o RJUE (nesse caso, trata-se de conjugá-los).

O desenvolvimento lógico de qualquer uma destas hipóteses leva-nos a concluir que em sede de apreciação a câmara municipal tem de verificar, de facto, o cumprimento das normas aplicáveis do DL 163/2006, independentemente de elas dizerem respeito a áreas interiores ou exteriores.

Vejamos porquê.


II. Princípio da especialidade e sucessão temporal

Vale a pena começar por sublinhar que não existe, em rigor, contradição.

O RJUE usa a expressão “incide sobre” e não “incide apenas sobre”… Por outras palavras, estipula que a apreciação incidirá sobre um conjunto de aspectos sem referir que todos os outros ficam necessariamente fora das competências da câmara municipal.

Para além disso, o DL 163/2006 funciona como lei especial face à lei geral (RJUE). Ora, um dos princípios fundamentais em Direito é o de que, onde coexistirem uma lei geral e uma lei especial, se aplica esta última. E a lei especial aplicar-se-á sempre em detrimento da lei geral, enquanto vigorar.

Note-se que este princípio – o princípio da especialidade – não é afectado pela sucessão temporal das leis, pelo que mesmo a recente alteração ao RJUE (Lei n.º 60/2007, de 4 de Setembro), que entrará em vigor dentro de meses, não porá em causa a aplicação do DL 163/06.

Ainda sobre a sucessão temporal de instrumentos legislativos, nomeadamente sobre o facto de nalguns pontos o DL 163/2006 remeter para o DL 555/99 (versão original do RJUE), vale a pena mencionar, também, que quando um diploma remete para outro, e esse já tenha sido alterado, não se faz menção às alterações introduzidas, pela simples razão que estas são introduzidas no diploma em causa que passa a ter aquela redacção. Ou seja, quando no DL 163/2006 se remete para o DL 555/99, deve entender-se que se remete para este com todas as alterações introduzidas posteriormente.


III. Articulação do DL 163/2006 com o RJUE

Uma das inovações mais relevantes do DL 163/2006 por comparação com o seu antecessor (o DL 123/1997) é a sua articulação com o RJUE (que ainda não existia quando o primeiro decreto sobre acessibilidade entrou em vigor).

Quando se diz que o DL 163/2006 não prejudica o disposto no RJUE, quer-se dizer que ele não altera a estrutura dos procedimentos previstos nesse regime jurídico – na realidade, a verificação do cumprimento das normas técnicas de acessibilidade será feita no quadro dos procedimentos previstos no RJUE, consoante a operação urbanística em causa.

O que o DL 163/2006 faz neste ponto, portanto, é acrescentar mais um parâmetro que há que considerar para que a licença ou autorização possa ser concedida. Por outras palavras, é uma lei especial que define obrigações específicas.

De resto, apesar de aí nada se dizer expressamente, havia quem entendesse que esta apreciação já decorria do DL 123/1997, pois não era concebível que as câmaras pudessem emitir licenças ou autorização em violação de normas legais. Com o novo regime, não restam agora dúvidas que a câmara tem de apreciar todo o projecto e indeferir se for o caso.

Em suporte deste entendimento pode, inclusive, citar-se o preâmbulo do DL 163/06, onde o legislador refere expressamente:

“Assume (…) grande importância a regra agora introduzida, segundo a qual os pedidos de licenciamento (…) devem ser indeferidos quando não respeitem as condições de acessibilidade exigíveis, cabendo, no âmbito deste mecanismo, um importante papel às câmaras municipais, pois são elas as entidades responsáveis pelos referidos licenciamentos e autorizações”.


PHG 19OUT2007


Agradecimentos: FPSM, JCO, JM, JS, PCO.

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